
SONHOS DE VANGUARDA
histórias que constroem
O cortiço atravessa gerações
Por Allan Veríssimo
"Minha mãe mora em cortiço, minha avó mora em cortiço, eu morei em cortiço e eu falo que, o que me motiva a continuar, é que meus filhos não vão mais morar em cortiço - vai ser outra realidade". (Gradsnay Faustino, 30 anos)
Os moradores dos cortiços de Santos não se rendem a precariedade em que vivem e são movidos pela determinação e o sonho de conquistar um futuro melhor. Esquecidos pelas autoridades, mas unidos, e sem abaixar a cabeça diante das adversidades.
É possível dizer que a moradia em cortiços começou no final do século XIX com a ocupação de casarões da região do Paquetá por imigrantes europeus, ex-escravos da região Norte do país e negros libertos que se dirigiam para as fazendas de café do interior do estado de São Paulo. Seduzidos pela possibilidade de deixarem as lavouras e atraídos pelo trabalho no porto, buscaram acomodações na cidade.
Sem condições financeiras, eram obrigados a viver em situações precárias. Os negros eram os mais afetados pela condição adversa por não gozarem da preferência da elite brasileira no momento de contratações. E assim, de uma forma rápida e quase sem ser notada pelo setor público, os casarões e construções do centro passaram a ser divididos em cubículos que eram alugados para diversas famílias formando as habitações coletivas.
Essa condição foi cenário do livro “O Cortiço”, escrito em 1890 por Aluísio Azevedo. O romance que descreve a vida de personagens que vivem em um único imóvel no Rio de Janeiro, retrata, de forma ficcional, as histórias de portugueses, imigrantes europeus, mulatos e ex-escravos africanos que contribuíram para o crescimento urbano no Brasil. A obra denuncia a exploração, as péssimas condições de moradia, de higiene e o desprezo de políticos e da classe dominante por essas pessoas. Exatamente 129 anos depois da publicação do livro, o que foi que mudou na realidade dessas comunidades?
A resposta, receamos dizer: pouca coisa. Infelizmente, o que mais temos em 2019 são pessoas como João Romão (o desprezível protagonista/antagonista do livro de Azevedo), que fogem tapando o rosto com as mãos ao presenciarem o resultado trágico de suas crueldades e explorações contra o povo oprimido para logo depois esquecerem o ocorrido e receberem orgulhosamente uma comissão de “pessoas de bem” em sua casa.
E assim sendo, “O Cortiço” permanece tragicamente atual. Em Santos, são casarões antigos, localizados na região central, com fachadas em más condições de preservação, fornecendo péssima qualidade de vida aos moradores. São centenas de famílias que vivem em cômodos divididos, compartilhando cozinhas e banheiros, sem privacidade alguma, quase escondidas do resto da cidade.
Fonte: CARMO, Bruno Bortoloto. A cidade e os Cortiços: morar e (sobre)viver em Santos (1870 - 1890). XXVIII Simpósio nacional de história – lugares dos historiadores: velhos e novos desafios. 27 a 31 de julho de 2015, Florianópolis/SC.
Um sonho possível
Por Daniel Soares
Buscando o sonho de uma moradia melhor, há seis anos, Samara Faustino, 61 anos, líder comunitária e presidente da Associação dos Cortiços do Centro (ACC), luta junto aos moradores dos cortiços de Santos para que as obras dos apartamentos do Conjunto Habitacional Vanguarda I e II sejam retomadas.
A ACC foi fundada em 1996. No início, os moradores ficavam à espera das promessas do poder público para obter as suas sonhadas moradias. Mas, em 2003, Samara assumiu a liderança da comunidade e, com ajuda da organização de serviço social Instituto Elos, que entrou em contato com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), o projeto começou a ser desenvolvido a partir da autogestão, ou seja, obras em que a própria comunidade gera o processo de solução para sua habitação. "A partir disso, fomos pelo caminho das pedras para realizar o nosso sonho", explica Samara.
O lugar escolhido para as construções foi um terreno abandonado que pertencia à União, na rua General Câmara, no Paquetá. Após a comunidade elaborar uma carta para as autoridades públicas, houve muitos embates burocráticos, até que o governo federal cedeu o terreno.
Desta forma, por meio do programa Crédito Solidário da Caixa Econômica Federal, foi possível a liberação de dinheiro para o início das obras, que aconteceu no ano de 2009. Vale destacar que este foi o primeiro projeto em nível nacional que conseguiu uma doação de terreno por parte da União o que criou um paradigma para que outras comunidades fossem beneficiadas. Para Samara, a imprensa foi fundamental para as conquistas. "Sem a mídia, nada das coisas que conquistamos teria sido possível. Existem mídias vendidas, mas também as que ajudam muito", comemora. Além disso em 2011, a ACC obteve mais uma conquista: foi a primeira comunidade da Baixada Santista a contar com verba do programa Minha Casa, Minha Vida, criado pelo governo federal.
FOTO: LÍVIA ABREU

Apesar da luta dos moradores, construções das moradias Vanguarda I e II foram abandonadas
FOTO: CAIO DAVI

Obras foram rompidas em 2013 por falta de recursos
O trabalho da ACC rendeu diversos prêmios: melhor Comunidade em Ação, da TV Tribuna em 2004, Zumbi dos Palmares e o UN-Habitat (Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos), onde conseguiram ficar entre os 50 melhores projetos de trabalho de autogestão do mundo para melhorias de condições de vida da população. “A gente nem imaginava que o nosso sofrimento iria resultar em prêmio", destaca Samara.
Porém, ao longo do tempo foram surgindo percalços no caminho dos moradores, pois com o aumento gradativo do preço dos materiais de construção, os recursos ficaram defasados. Em 2013 as parcerias foram rompidas e a obra foi paralisada.
Atualmente, por indicação da Secretaria do Patrimônio da União, a ONG Peabiru, em parceria com a ACC, está responsável pelo projeto da retomada da obra. O trabalho atual consiste em levantamento de custos, elaboração de novas planilhas e encaminhamento de diversos ofícios, inclusive, um deles entregue no dia 11 de setembro deste ano para Caixa Econômica Federal, explicando como será feito o retorno da obra de moradia para 181 famílias. Desta vez, por conta do atraso da construção, não será possível fazer autogestão como foi no princípio, por isso, uma construtora assumirá o controle. “A Caixa também quer acabar com esse sofrimento logo, pois para eles é vitorioso entregar a obra", relata Samara. Segundo ela, o projeto é mandado para Brasília, porém, a resposta sempre é no sentido da necessidade de "enxugá-lo", para reduzir custos. “A estratégia do governo é tentar nos vencer pelo cansaço", comenta.
Apesar das dificuldades, Samara mostra que a luta tem uma guerreira resistente: "Não é poesia bonita, mas sempre acreditei que a gente pode transformar o impossível em possível, só perdemos quando desistimos. Pode estar dando tudo errado, mas eu continuo pintando o meu quadro".
A personificação da esperança
Por Ágata Luz
Uma voz rouca, mas alta, forte e dona das palavras de luta que ecoam pelos cortiços do Centro da cidade de Santos. Um sorriso largo que ilumina até os cantos mais escuros das pequenas e úmidas moradias daqueles que são ignorados pelas autoridades, mas jamais esquecidos pela líder da comunidade, que vive no mesmo cenário. Um cabelo que retrata o modo como Samara Margareth Conceição Faustino leva a vida: colorida, forte e feliz.
Mas nem sempre foi forte como mostra, pois sua batalha começou cedo. Nascida em São Paulo, com meses de vida, ficou tão doente a ponto dos médicos acreditarem que não viveria. Como corria risco de morte, conforme costume da época, Samara chegou a ser batizada em Santos, durante uma visita a parentes. Surpreendendo todos, Samara sobreviveu e hoje faz a diferença na vida de centenas de pessoas.
Brigona, como se define, diz que a personalidade forte vem do sangue, mais precisamente do de Vilma Tentação, sua mãe e inspiração, que cuidou de sete filhos e ainda se dedicou a todas as pessoas que precisavam de ajuda. “Ela era uma negra bem ‘altona’ (sic) e não deixava que ninguém tratasse outra pessoa mal na frente dela. Acho que daí que vem todo esse meu comportamento”, explica orgulhosamente Samara.
Mãe de três filhos, Samara representa a figura materna daqueles que moram em habitações precárias nos cortiços e é a personificação da esperança de 181 famílias, que totalizam cerca de 700 pessoas, que lutam por uma casa própria. Com 61 anos, não admite que a realidade de sua comunidade continue abandonada, por isso, há 19 anos deixou de baixar a cabeça e ergueu o queixo rumo a um futuro para conquistar moradia própria em condições dignas para todos. Em 2000, Samara ingressou na Associação dos Cortiços do Centro (ACC) trabalhando como secretária: “foi quando eu deixei de ser apenas uma associada que ia às reuniões, batia palma e ia embora e comecei a participar efetivamente da ACC”. À época, apesar das características e das opiniões marcantes de Samara revelarem uma mulher forte e líder de natureza, ela não se imaginava à frente da comunidade.
FOTO: BEATRIZ LIMA

Ícone de liderança, Samara representa a voz de mais de cem famílias
A hoje presidente da ACC era figura conhecida em audiências, congressos e manifestações, mas não havia se candidatado para ser membro da entidade. Samara foi escolhida para compor a diretoria pelos próprios associados. “Faltava uma pessoa para fechar a chapa e ninguém levantava a mão. Daí começaram a citar meu nome. Quando me dei conta, mais de 200 pessoas estavam me apontando. Então eu fui, como um cachorrinho com o rabo entre as pernas, e acabei entrando”, lembra rindo “Samaravilha”, como é carinhosamente chamada pelos vizinhos.
Apesar do destino a colocar em uma posição em que se não entendia muito bem o que significava, sua chegada à diretoria da ACC não foi à toa. “Eu não entendia nada, só queria minha habitação igual todo mundo”. O que ela não imaginava é que o sonho da habitação seria colocado no papel e, mais tarde, tomaria forma por meio dos conjuntos habitacionais Vanguarda I e II.
"Eu, mulher, negra, do ‘gueto’, da periferia, conquistei algo que as autoridades nunca fizeram"
Apesar da comunidade já ter recebido diversos prêmios por gestão e organização, ficando inclusive, entre os 10 melhores projetos sociais do mundo inteiro, para Samara, o momento mais marcante e inspirador de todos esses anos, foi a conquista da área onde seria erguido o conjunto habitacional. “Estávamos lutando tanto e de repente aconteceu, foi como transformar o impossível no possível”. Com brilho e lágrimas nos olhos, Samara acredita que a perseverança dos moradores foi a maior aliada, acima de qualquer tipo de política: “eu, mulher, negra, do ‘gueto’, da periferia, conquistei algo que as autoridades nunca fizeram. É algo muito nobre que realmente me emociona porque não aceitamos propina ou nada de errado”, conclui.
A construção dos prédios está parada, mas tudo que foi feito até agora é fonte de inspiração para a luta que garantirá o amanhã. “Continuamos lutando e só vamos parar quando conquistarmos nossas moradias”, finaliza Samara.
Hoje, o maior sonho da vida dela, é claro, não envolve apenas o fim da moradia em cortiços. “Meu maior desejo, de coração, é um termo até bonito, mas com um significado ainda maior para a gente: o empoderamento molecular da comunidade”, destaca a presidente da ACC. Segundo Samara, esse sonho nasceu quando ela se sentiu sozinha após questionar o então presidente da ACC quanto a ações que não eram corretas. Quando ele abandonou a associação, ela se viu solitária, mas com um único e grande desejo dentro dela: que todos morassem bem, tivessem trabalho e que a realidade da comunidade fosse transformada.
“Este empoderamento é o desejo de que todos sejam protagonistas, que cresçam e façam tudo sozinhos, com direito a voz. Já pensou todas as comunidades serem empoderadas? Todos vivendo em condições dignas, fazendo as suas coisas, sem faltar ninguém?”,. O desejo da Samara está longe de virar realidade nacional ou regional, mas aos poucos, vai seduzindo pessoas, como Ana, Maria, e muitos encortiçados que Samaravilha ensina e chama para a luta diariamente.
Ultrapassando barreiras
Por Amanda Bento
A frase "a união faz a força" nunca foi tão bem representada como é pelos moradores dos cortiços de Santos. Dentro dos antigos casarões, atrás das fachadas que são consideradas patrimônio histórico, habitam pessoas em busca de sobrevivência.
Maria Aparecida Monteiro, 73 anos, é um exemplo dessa batalha. Moradora do cortiço há 38 anos, Maroca, como é conhecida, conta um pouco de suas experiências em todos esses anos:"a gente já foi para São Paulo, já passamos fome, a polícia já veio do Palácio do Governo com arma bater na gente, mas sempre ficamos juntos enfrentando tudo".
Sentada na calçada em frente à casa onde aluga um cômodo para morar e ao lado de Samara, sua companheira fiel nessa luta, Maroca explica que já fez muito barulho e movimento para buscar vida melhor: "já fizemos muitas coisas pra conseguir moradia, batemos panela, enfrentamos muitas dificuldades".
Além dos banheiros e cozinhas compartilhadas, os moradores dos cortiços dividem uma amizade sólida e um companheirismo gigante, principalmente nos momentos de dificuldades.

FOTO: BÁRBARA SILVA
Maroca e Samara narram experiências que viveram juntas
Eles provam ser uma grande família, que vai além das divisões que separam os pequenos cômodos em que moram, pois todos têm a certeza de que na porta ao lado, sempre há alguém disposto a ajudar, seja com apoio, um ato de carinho, um pouco de comida e, às vezes, até mesmo dinheiro para a compra de um remédio ou transporte.
Do outro lado da calçada de Maroca, atrás dos portões de ferro de uma construção antiga de paredes vermelhas, vive Ana Maria Santana, de 37 anos. Em 13 anos dividindo um quarto no cortiço, ela guarda histórias que carregará para o resto da vida. Sempre trabalhadora, relembra a revolta que sentia ao presenciar as frequentes invasões da polícia: “eles entravam, invadiam a casa, entravam nos quartos de todo mundo”.
Ana mudou do quarto onde morava, mas continua no cortiço e não supera o medo de tudo acontecer de novo, pois “só quem acordou no meio da noite tendo que ser tirado de sua casa sem entender o que está acontecendo sabe a insegurança que fica, são raras as boas noites de sono”, diz.
Com a dificuldade de moradia e sem condições financeiras, Ana encontra ajuda em doações e no apoio de Samara. “Nesse pedaço aqui, eu acho que se não fosse ela, muita gente estaria desapontada. Ela, de uma forma ou de outra, ajuda, dá um jeito”, agradece.
Os laços na comunidade, ao que tudo indica, vão além de sangue, é formado por um grupo de pessoas que, unidas, enfrentam os mesmos desafios e, mesmo diante da pobreza e da miséria, acolhe a todos para que se sintam em casa. Para manter essa energia, Samara conta que todos os inquilinos se juntam para celebrar a passagem das datas comemorativas, como Dia das Crianças, Natal e Ano Novo e assim, redefinem os status de família.
Nas histórias de vizinhos, todos formam uma grande família, com diferentes ideias e opiniões, mas unidos quando alguém precisa de socorro. Além de correrem atrás da visibilidade para que os seus direitos sejam ouvidos, correm também atrás dos seus sonhos e projetos de vida. Mas um deles mobiliza todos que tentam superar qualquer obstáculo que possa parecer: a esperança do Projeto Vanguarda ser erguido.
Um sistema deficiente
Por Matheus Mendel
Já dizia o líder espiritual Dalai Lama, o “Lar é onde você se sinta em casa e seja bem tratado”. Às vezes, estes dois tópicos podem vir separados. Apesar da boa localização dos cortiços e o acesso aos serviços públicos (como água, luz e esgoto) e hospitais, não há necessariamente qualidade de vida. A falta de manutenção dos imóveis por parte dos proprietários e a superlotação dos ambientes, com várias famílias dividindo um só banheiro e cozinha, dá espaço para a proliferação de doenças.
“A maioria das pessoas já está conformada com essa vida”, lamentou-se Gradsnay Faustino, uma das líderes do cortiço. Com 30 anos de idade e dois filhos, ela acrescenta: “Tenho sorte. Não tenho plano de saúde e meus filhos nunca ficaram gravemente doentes a ponto de eu precisar recorrer a tratamentos mais difíceis ou distantes”.
Em busca de assistência
Infiltrações, que resultam em paredes mofadas, e altos índices de tuberculose são os principais problemas do cortiço de Santos. Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação, do Ministério da Saúde, foram notificados 360 casos de tuberculose em Santos em 2018.
A comunidade nos cortiços também sofre de um mal comum no Brasil: as filas para atendimento nas policlínicas. “Passamos maus bocados com o agendamento especializado”, relatou Gradsnay, contando que o sobrinho de 9 anos de idade já teve tuberculose. “A maioria das vezes não tem medicamentos”, esbravejou ela. “Sempre usamos medicamentos naturais”, acrescentou.

Os tratamentos naturais, adotados pelos moradores, vão desde o famigerado chá de boldo como também outras plantas medicinais. Gradsnay, que trabalha como recepcionista no hospital Guilherme Álvaro, ainda ainda ressalta que as autoridades não podem alegar inocência do problema, pois foram várias vezes chamadas para discutir os problemas de saúde dos moradores do local. Foram realizadas várias reuniões , no próprio cortiço, junto a ONGs e órgãos públicos. “Nestas assembleias, sempre procuramos formas de mostrar nossa realidade e o quanto precisamos da ajuda das autoridades locais”.
Uma cultura presente
Por Henrique Miguel
Um lugar rico em histórias, e com um povo aguerrido, onde não falta vontade de crescer, também é representado pela comunidade em diversas produções artísticas. Desde a confecção de bijouterias a partir de material reciclável, as aparições de moradores em diversos filmes, até a organização de uma biblioteca mantida pela ACC.
Na padaria “Um só coração”, em frente ao cemitério do Paquetá, diversas fotos do bairro estão espalhadas pelas paredes. As imagens, altamente inspiradoras que mostram uma realidade pouco vista pelas pessoas da zona leste da cidade de Santos, são fruto de um projeto desenvolvido há cinco anos, quando o Sesc promoveu oficinas para ensinar os moderadores a fotografar e apresentar a área de cortiços a partir da visão deles. "Mostramos o que é feio para uns, mas é bonito para nós”, declarou Samara Faustino, presidente da Associação de Cortiços do Centro de Santos.
Ainda na padaria, subindo as estreitas escadas de madeira, chegamos à biblioteca, um espaço amplo, com estantes de livros preenchendo grande parte do local inicialmente idealizado por Samara para ser uma brinquedoteca.
FOTO: BEATRIZ JESUS

Livros doados compõem a biblioteca, estimada pelas crianças
Hoje, a sala além de receber livros doados ainda há um pequeno espaço com brinquedos para as crianças, que leem e brincam juntas.
Nas estantes da biblioteca, mais fotos. São moradoras usando as famosas bijuterias feitas por elas mesmas. As peças são fruto do projeto Raízes Corticeiras que promove atividades para gerar renda às mulheres. São acessórios coloridos, feitos de couro, chita e garrafa PET. Com o sucesso estético dos produtos, as bijuterias passaram a ser vendidas até mesmo internacionalmente.
Vozes do cortiço
Entre diversas histórias de artistas que saíram do Paquetá e ganharam reconhecimento nacional, os moradores têm orgulho de contar a do bailarino Igor Maximiliano, sobrinho de Samara. Nascido em cortiço, Igor trabalha no programa do Faustão, no quadro "Dança dos Famosos" e é inspiração para muitos. "Esses dias ele estava aqui, deu aula para as crianças. Ele não esqueceu de onde veio", afirma Samara.
Além de artistas natos, os cortiços também recebem o apoio de fora da comunidade, como o do famoso cantor de rap do grupo “Facção Central”, Eduardo, que deu palestras para incentivar os jovens a focar nos estudos.
Falando orgulhosamente daquilo que os faz serem vistos e, com brilhos nos olhos, não deixam de citar os filmes nos quais tiveram participação. Entre eles, “José Aldo”, gravado em 2016, que conta a vida do lutador de UFC, o filme “De Menor”, de 2013, que retrata a história de uma advogada recém-formada, que divide sua rotina como defensora pública de crianças e adolescentes no Fórum de Santos, além é claro, do premiado “Querô”, baseado no romance de mesmo nome de Plínio Marcos, famoso escritor santista que usou o ambiente do cortiço como pano de fundo para muitas obras.
Expressão e representatividade
FOTO: EDUARDA GOUVEIA
A luta dos moradores também conquistou a revitalização de um espaço de lazer para as crianças, que antes estava deteriorado e ocupado por pessoas em condição de rua. Com duas bolas de futebol, o genro de Samara, Sérgio Ricardo, de 34 anos, reúne semanalmente as crianças na quadra para as ensinar o esporte. “A nossa maior preocupação é tirar as crianças da rua", declara.
A importância do espaço não está só na sua ocupação atual, mas principalmente na história e no nome que carrega. A área, localizada na praça Nagazaki, em 11 de outubro de 2019 foi nomeada "Playground Carla Roberta Barbosa". Há dois anos, Carlinha, como era chamada carinhosamente pelos moradores dos cortiços, tinha apenas nove anos quando foi estuprada e assassinada no local. O sentimento de revolta permanecerá, mas os moradores encontraram uma maneira de homenagear e eternizar Carlinha na praça que costumava frequentar com a ingenuidade de criança.

Playground que homenageia Carlinha é espaço de lazer para todas as crianças da região